segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Quinto e último dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

Foram só cinco dias. Cinco dias para os meninos conhecerem um laboratório. Um laboratório a sério.

Em cinco dias, assistiram a quatro conferências. Primeiro, uma de um professor americano do MIT, vindo apresentar o seu estudo sobre o canto dos pássaros. Impecável o senhor, estilo négligé pensé, extremamente correcto, frases escorreitas num inglês exemplarmente articulado. Uma exposição quadradamente construída, frases mecanicamente encadeadas, «ok?» semeados aqui e ali para captar a audiência e 20/20 na manipulação da régua de apontar. Um sorriso inabalável, uma expressão serena, mesmo ao mostrar fotografias como esta: um pássaro com eléctrodos espetados na tola, que dificuldade tive eu em abafar o riso!




É uma pena, vê-se muito mal...








Outro dia, foi um japonês do laboratório a apresentar o seu novo microscópio. Num inglês incompreensível, num tom monocórdico, lá foi debitando o seu trabalho, por detrás dos seus enormes óculos redondos e do alto do seu metro e meio.

As duas outras conferências foram dadas por jovens meninas, pouco mais velhas que a Alfacinha. Em inglês, mesmo que a audiência seja toda francófona, snobismo?, coradinhas, inseguras. E a Alfacinha lá atrás, solidária.

E em todas estas conferências, uma assistência activa. Perguntas a toda a hora. Novas ideias, sugestões. Críticas. Sorrisos cépticos. Sente-se o borbulhar de cabeças, que questionam o que está a ser apresentado, nos seus princípios, nos seus métodos, nas suas conclusões. Sente-se o borbulhar de cabeças que têm, ali, novas ideias para as suas próprias experiências.

Numa das conferências, expunha-se um artigo recentemente publicado por um centro de investigação americano. Sem disfarces, foi a competição nua e crua.
- Já viste as concentrações que usaram? É impossível que tenham tido estes resultados.
- Entregaram o artigo em Julho e publicaram em Setembro… Há cunha!
Explodiram as críticas, os risinhos irónicos, os abanares de cabeça. E no fim, todos saíram da sala pouco convencidos das novas descobertas anunciadas no dito artigo.

Foi este ambiente novo que a Alfacinha conheceu, durante esta semana.
Muita determinação e paciência viu naqueles corredores. Numa tarde, viu a L mudar 18 vezes de pipeta e encolher os ombros ao dizer «Hoje é um mau dia, está muita humidade por isso quando faço as pipetas não me saem todas do mesmo tamanho. Tenho de recomeçar!»
E sempre muito entusiasmo, muito espírito de equipa e simpatia.



- Então K, parece que há uma vista fabulosa lá em cima…
- Pois é! Venham daí, vou-vos mostrar.
Então, K levou os dois ao terraço por cima do nono andar da ENS, em pleno 5º arrondissement. Uma vista absolutamente deslumbrante naquele fim de tarde gelado. Paris a toda a volta: a torre Eiffel, a Défense, a île de la Cité, a cúpula do Pantéon, o Sacré Coeur, a bibliothèque nationale de France, a Place d’Italie, o Observatoire, Montparnasse…
Assim se despediram do estágio.



Como prometido, aqui ficam fotografias das experiências do outro dia: pintalganço de neurónios.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Terceiro dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

Hoje a Alfacinha viu neurónios. De lágrima ao canto do olho.

Primeiro, pintaram com uma proteína verde os neurónios que queriam identificar. Depois, pintaram as sinapses com uma proteína vermelha. O resultado foi uma imagem colorida, onde se desenhava uma impressionante rede.

Ali estavam eles, verdadeiros, vivos, neurónios mesmo, neurónios a sério. Árvores infinitas de ramificações serpenteantes.

Depois, encostou-se uma pipeta a um neurónio, e com um beijinho abriu-se um buraquinho. Injectou-se então uma pequena estimulação e, em troca, o neurónio enviou um potencial de acção.

Ali estava ele, o potencial de acção, uma pequenina explosão eléctrica, um soluço, aquela correntezinha responsável da actividade do nosso cérebro.

Maravilhados, S e a Alfacinha olhavam para o ecrã do computador onde se revelava a natureza, com a sua misteriosa organização. Comovente.

Enquanto não vêm estas imagens, aqui ficam outras, do chamado Brainbow. Recentemente, um investigador conseguiu arranjar maneira de colorir cada neurónio: cada um tem o seu tom, o que permite diferenciá-los.


Arte?


(clicar nas imagens para ir ao site de origem)










Então, quantos comovidos?

E agora especialmente para o mano: dissecções do cérebro florescente dos ratinhos (não encontrei fotos exteriores dos ratos...). À direita só aparecem os neurónios que funcionam com glicínia (cerebelo e medula espinal), à esquerda todos os que funcionam com GABA (todo o sistema nervoso).

Nota: glicínia e GABA são neurotransmissores, ou seja moléculas que estabelecem a comunicação entre dois neurónios ao nível da sinapse.

http://www.biologie.ens.fr/neuroinh/

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Segundo dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

- Hoje vamos extrair o hipocampo de cérebros dos ratinhos que nasceram ontem. Vêm comigo buscá-los à reserva de animais?

No segundo seguinte já iam a caminho das caves os dois estagiários, S e a Alfacinha, acompanhados da investigadora australiana, K.
Chegados à entrada, K abre uma porta…
- Podem-se sentar aí, para calçar as meias esterilizadas.
S e a Alfacinha sentam-se, de cada lado de um saco de papel que estava pousado no banco.
- Podes-me passar o saco, S.
- Que estranho, está quente… O que há aqui dentro?
- Ah, são ratinhos mortos.
Olharam para o banco, depois um para o outro e desataram a rir os dois novatos. Quando virmos alguém com sacos destes já sabemos o que transportam!

As preparações para a entrada na reserva de animais continuaram: vestiram um fato-macaco descartável, extremamente sexy, lavaram as mãos meticulosamente, calçaram luvas, voltaram a lavar as mãos… E quando prontos, entraram.

Um corredor, um cheiro pestilento, várias salas com estantes a toda a volta, repletas de caixas transparentes onde ratinhos a saltitar. E numa delas, oito ratinhos recém-nascidos. Olá bichinhos! À primeira vista, pareciam ratinhos normais. Mas pondo um capacete especial, a coluna vertebral de alguns aparecia… verde! Ficou fascinada a Alfacinha, boquiaberta. Quem terá mais ar de extra-terrestre: eu com esta fatiota toda e este capacete na cabeça ou estes ratinhos florescentes?

K pegou em cinco deles e levou-os para o laboratório, onde outra investigadora, japonesa, L, se preparava para a operação. Bata, luvas, instrumentos: tudo a postos.
S: «Não percebi como vai matar os ratinhos...»
E L, pronta para a operação, de tesoura na mão, olha para S com cara de precisas-mesmo-que-te-explique-oh-maçarico-?. Não tiveram tempo de pestanejar que zás, já L tinha dado à tesoura e a cabeça do ratinho fora decapitada. Isto é que é despacho! Recolheu então as cinco cabeças, que continuaram a mexer na caixa de Petri.
L, imperturbável, prosseguiu com o massacre debaixo do microscópio, sempre a explicar o que fazia.
S contorcia-se com caretas.
E a Alfacinha despedaçava-se num ataque de riso incontrolável.
Ratinhos recém-nascidos florescentes, daqui.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O primeiro dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha

«Régulation présynaptique de la transmission inhibitrice par les transporteurs neuronaux de la glycine»
Quero este.
E às 9h30 em ponto, aí estava fresca a Alfacinha, pronta para começar. Um olá ao colega, um bom dia ao coordenador de estágio, e vamos a isso que se faz tarde.
Veio então a explicação do objecto de trabalho. Obscura…
A manhã passou, sem que o nevoeiro sobre a glicínia e seus segredos se dissipasse, e sem que fosse possível qualquer contacto com o colega de estágio, ele mesmo extremamente obscuro…
Era preciso um milagre para desobscurecer tudo isto.

«Viram que há uma prova de champanhe lá em baixo? Vão lá enquanto eu trato aqui desta solução para logo. E vão chamar ali aquela investigadora, ela adora champanhe.»
Não disseram que não, os dois pupilos. Isto começa bem!
Acompanhados da dita investigadora, uma australiana redondinha, dirigiram-se para a bancada onde um professor de genética, membro fundador do clube de vinhos da école, os acolheu com o maior prazer. Um copito a cada um, e toca a andar. Sucederam-se então os vinhos.
- Não sei se querem provar este também…
E a australiana de braço estendido:
- Siga! Vá lá meninos, têm de provar.
Ao que os dois obedeciam, dever de estagiário face ao seu superior, não é?
Graças ao despachanço da australiana, provaram a montra inteira: seis variedades de champanhe francês, duas de vinho branco e só para rematar um tintinho. Sempre com as devidas explicações.
Um pouco atordoados, regressaram ao laboratório. E, feito notável, conseguiram, pela primeira vez, trocar umas palavras. Comme quoi le vin, ça crée des liens!

- Então meninos, a prova de vinhos? Bom, estive aqui a preparar o material, agora vão injectar os ovócitos de sapo, com esta micropipeta, na parte esquerda daquele buraquinho pequenino ali, conseguem ver? Depois têm de rodar estas duas manivelas ao mesmo tempo, no sentido dos ponteiros do relógio, cuidado não se enganem, para espetar lá dentro os eléctrodos, está bem? Mas tem de ser muito devagarinho…
Mau Maria… Isto apresenta-se complicado.
E com muita concentração, a Alfacinha lá brincou com os ovócitos, sem grandes danos materiais.
E até lhe pareceu que tudo foi ficando mais claro durante a tarde.

Conclusão: o vinhito/champanhe foi a salvação do dia.

domingo, 16 de novembro de 2008

Da dificuldade de dizer qualquer coisa quando se tem muito que dizer.

Primeiro, ataca-se a coisa com boa vontade. Vamos a isso. Alinham-se duas palavras, duas ideias, três com sorte, mas não, não sai nada. Não é isto. Apaga-se tudo. Volta-se a tentar. Vêm as mesmas palavras, sempre as mesmas, melgas, as mesmas ideias, coxas. Não, também não é isto. Apaga-se tudo. Assim se pode passar a tempo. E quanto mais tempo passa, mais coisas ficam por dizer. Depois, ataca-se a coisa com mais agressividade. É desta que sai. Começa-se com alíneas: tudo o que é preciso assinalar.

- Que a Alfacinha entrou em Ciências Cognitivas na École Normale Supérieure de Paris.

- Toda a sua felicidade por ter realizado o projecto que a levara a Paris. Evitar lamechices, mas mostrar que lhe vieram as lágrimas aos olhos quando, do fundo do seu futuro casaco, recebeu o telefonema dos seus pais a dizer que o seu nome estava na lista dos admitidos.

- A série de buffets de boas vindas: Collège de France, École Normale… Junto à mesa dos petits-fours, numa mão o copo de champanhe, da outra um gesto ao cabelo de Quem-somos-nós.

- O seu orgulho ao exibir o cartão de estudante para o módico desconto na livraria. É de se perguntar se foi mais pelo desconto, ou pelo cartão.

- Toda a sua emoção quando entra nos locais, quando se move lá dentro sentindo que já começa a ser o seu espaço, quando se entretém nas aulas de filosofia na Salle des Actes a ver os nomes dos que por lá passaram, e cora, e se sente pequenina, tão pequenina.

- A admiração da Alfacinha quando vê em bibliografias os nomes que vê nas portas dos laboratórios.

- O reflexo da Alfacinha de olhar para o rés-do-chão do prédio de biologia quando é noite cá fora, e se vêem todos os laboratórios, todas as pipetas, tubos de ensaio e companhia provocadoramente em exposição.

- Os ataques de riso da Alfacinha quando acaba um mail com Cordialement.

- A vontade da Alfacinha de pôr uma música pimba a tocar numa sala onde dezenas de pessoas trabalham horas a fio num silêncio tumular, sem levantar a cabeça.

- A vontade da Alfacinha de inaugurar com um bom desenho ou um bom slogan filosófico as mesas completamente brancas das salas de aula. Ou simplesmente a clássica pastilha elástica na cadeira, ou no puxador da porta da casa de banho, numa tentativa de tornar o sítio mais parecido com qualquer faculdade.

- A estranha fauna que por lá anda: jovens rapazes que fazem corridas de Rubik Cube de 12 faces no recreio, meninas que se sentam no chão a brincar com papelinhos no meio do ginásio convertido em discoteca, pessoas que leram o Harry Potter em grego antigo, grupos de investigadores que à mesa da cantina têm a seguinte conversa: «Foi com FRET ou com FRAP que fizeste a experiência?», «A da KDEL e Rab5? Foi GFP simples. Estou tão entusiasmado com isto, não durmo há uma semana, o CNRS devia ter uma linha telefónica 24h para os investigadores…»

- Bref: sítio formidável, e etologicamente interessante.


Mas isto são apenas alíneas, ideias dispersas, sentimentos difusos que correm todos os dias na cabeça da Alfacinha. Tentam-se encadeamentos, textos propriamente ditos, mas tudo sai insuficiente, impreciso. Como tornar isto articulado, genuíno? Até à data, solução não encontrada.





A Cour Aux Ernests: bustos a toda a volta, um laguinho com peixes (os ditos Ernests) ao centro.

A Salle des Actes: com placas de mármore a toda a volta onde estão gravados os nomes dos que por cá passaram. Agora que estas já deram a volta à sala, uma nova série de placas de acrílico começa o seu périplo.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Mon caddie, mon amour ou Meu carrinho de compras, minha salvação (muito menos poético)

Para quem se inicia na rotina do supermercado,
Uma das preocupações é ser-se poupado.
Recusa-se então um caddie comprar,
Pensando que um par de jovens braços,
Chega para tudo transportar
Sem grandes embaraços.

Isto até ao dia das promoções,
Em que redobram as mesmas preocupações.
Quatro pacotes de leite pelo preço de três,
Duas latas de ervilhas com uma grátis de cenoura a acompanhar,
Eis as contas que se fez:
Há que aproveitar!

Mas a felicidade das poupanças é de pouca duração:
Assim que se vê carregado que nem um burro,
Surge a tremenda e dolorosa aflição
De se ser tão casmurro.
Agoniza-se até casa sob o peso dos sacos,
Sofrendo dos membros cada vez mais fracos.

Marimbe-se a economia!
Marimbe-se o look antiquado!
Começa então uma grande correria,
Em busca do caddie tão desejado!
Às riscas, às pintinhas ou aos quadrados,
É só escolher neste festival de caddies abençoados!

Oh caddie, se soubesses como minha vida mudaste!
Como minhas compras facilitaste!
Com tuas brancas rodas pela rua fora,
Passeias os meus víveres sem demora!
E quando em casa, guardo-te com um beijinho,
Num armário, todo dobradinho.

sábado, 12 de julho de 2008

Se um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais.

Foi assim que pensou a Alfacinha.
Se 11 orais incomodam muita gente, 11 orais + 1 espectáculo de sapateado incomodam muito mais. Então, toca a andar, vamos a isso.
24 dias, três personagens: a Alfacinha com chinelos de preguiça, não me apetece estudar, não me apetece estudar, a Alfacinha examinada, cabeça erguida, voz convincente, será que sei mesmo do que estou a falar?, e a Alfacinha do palco, step shuffle, step step, drawback, drawback...
E ao 25º dia… a Alfacinha de férias. Sorriso nos lábios, foi vender os livros de física e química. Cambaleante com tal peso, peso em kilos e em neurónios, despachou aquela tralha toda. E ao sair da livraria, felicidade. Mesmo. Acabado, livrei-me disto! Quase que fez um salto com toque de calcanhares em plena Place de Saint Michel.

(ai de quem mandar isto para os apanhados!!)

sábado, 10 de maio de 2008

Quatro dias, passa depressa.

Com esta frase acordou a Alfacinha na véspera do começo das provas, depois de uma noite mal dormida, de pesadelos com todas as coisas ingurgitadas em salada russa, quelle est l’enthalpie libre d’un coeur en systole de téléostéen lors d’une réfraction de Taylor-Lagrange dans des conditions idéales de température et de pression, sachant que le phospholambane inhibe le recepteur muscarinique à l’acéthylcholine dans le cycle de Krebs ?.
Ainda estremunhada foi abrir as portadas e ver, uaaaau, que lindo dia lá fora. Eis senão quando, cai-lhe um aranhiço de dimensões nunca vistas no braço ainda quentinho dos lençóis. Sistema ortossimpático em acção, descarga de adrenalina pela glândula supra-renal, reflexo de sobrevivência activado, reacção de fuga: deu um salto e um grito, gritinho. Respiração e ritmo cardíaco acelerados, procura o aracnídeo. No chão do quarto: nada. Na varanda: nada… Senta-se na cama, respira… Mexe no cabelo… Aí estava o artrópode. De novo o ortossimpático, e desta vez fuga pela varanda. Sentiu-se ridícula a Alfacinha, na véspera dos concursos para agronomia e veterinária…

Foram quatro dias de concursos, para fechar estes dois anos de estudo.
Quatro dias a levantar com as galinhas para ir até La Villette onde decorria a prova.
Chegada lá, a Alfacinha instalava-se à sua mesinha, com as suas canetas, fazem-me companhia, canetas?, à espera da distribuição do enunciado. Ela, mais 644 estudantes e umas dezenas de vigilantes.
«Je demande aux candidats de se lever et aux surveillants de distribuer les sujets».
645 pessoas levantavam-se das suas cadeiras, enquanto os enunciados eram pousados nas mesas ao contrário. Silêncio total. 645 pares de olhos a tentar perceber o que está escrito na folha até que…
«Vous pouvez vous asseoir, je déclare l’épreuve commencée.»
645 traseiros a atirarem-se para as cadeiras, 645 enunciados a serem virados impacientemente e percorridos freneticamente. 645 cabeças viradas para o papel, 645 canetas a dar a dar.
Ao fim de três horas e meia…
«Je demande aux candidats de se lever, de poser leurs stylos, je déclare l’épreuve terminée.» Nada mais a fazer senão levantar, reabituar os olhos a ver ao longe, esticar o braço dorido e respirar fundo ao pensar : menos uma.
E foi isto, duas vezes por dia, durante quatro dias.
26 horas de prova e umas 90 páginas escritas.

Há uns anitos, uma ida a La Villette tinha outro balanço para a Alfacinha: quantas manivelas rodou, quantos tubos com água encheu, em quanto tempo fez escorrer a areia… Há uns anitos fazia parte das criancinhas histéricas que corriam de um lado para o outro, com um sorriso na cara. Mal sabia ela na altura, que uns anitos depois seria mais olheiras e desejos assassinos ao ver criancinhas a berrar e a balouçar-se nas portas das casas de banho…
Já não surpresas com as experiências, já não surpresas com os jogos… Surpresas ao ver que 3h30 de dissertação sobre raízes de angiospermas, surpresas ao ver que 3h30 de análise da adaptação cardíaca do piton durante a digestão, surpresas ao percorrer a prova de física e não encontrar a termodinâmica.

Talvez as idas em pequena a La Villette tenham feito com que a Alfacinha se encontre agora frente a frente com problemas de electricidade, química orgânica ou de digestão dos pitons. Veremos o que trarão estas recentes idas a La Villette!




(A sala de prova)

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Pequenos-nadas de férias

Uma das vantagens de estar de férias é mudar as horas de actividade e descobrir como é a rua nas horas em que normalmente se está em aulas.

Aqui, então, alguns pequenos-nadas saborosos das férias:

- Acordar com um sorriso ao ouvir o «Bonjour» mágico do magnífico, encantador e apaixonante Pierre Bouteiller no Si bémol et Fadaises, na TSF Jazz.
- Abrir as portadas e ver que já há vida na rua.
- Ouvir aspiradores e móveis arrastados nos vizinhos.
- Ter tempo para tomar um pequeno-almoço decente e ver os programas da manhã na televisão. Ver as publicidades a detergentes, maioneses e pastas de dentes.
- Ver o correio ao sair de casa e não ao chegar.
- Ir ao supermercado à hora de abertura e andar a 2 à hora atrás da velhinha de metro e meio pendurada na bengala. Fazer zigzags nos corredores entre os empregados que repõem os stocks. Ajudar a mesma velhinha a alcançar as bolachas integrais da última prateleira. Não fazer fila na caixa.
- Ir ao correio e ajudar a velhinha (outra) a comprar um selo na máquina. Não fazer fila no correio.
- Ver as lojas a abrir e as meninas de saltos agulha e unhas vermelhas a levantar as grades das portas.
- Ver senhores e senhoras a passear cãezinhos na rua.
- Entrar no autocarro e ver que se está claramente fora da média de idades, até que entra o primeiro, o segundo, o terceiro carrinho de bebés com respectivos papás executivos ao telemóvel.
- Ouvir as campainhas das escolas sem pensar «Estou atrasada».
- Ver os putos a correr com mochilas e pensar «Não estou atrasada. Mas tu estás.»

Pierre Bouteiller ele mesmo. O sol das manhãs da Alfacinha.

quinta-feira, 27 de março de 2008

À rã esquartejada com um bisturi e à abelha em puzzle

Tenho mesmo de pegar nisto à mão…?
Acabadinha de almoçar, a Alfacinha encontra-se frente a frente com um balde cheio de rãs irreversivelmente adormecidas. Nada de pinças, pobre da rã, ainda a magoo, e com um gesto rápido atira uma vítima para a mesa de operações. Missão: observar o aparelho respiratório da dita.
Começa por lhe abrir a boca. Diga AAA, senhora rã! Puxa-lhe a língua, envolta numa viscosa baba cor-de-rosa. Enfia-lhe uma pipeta pela goela abaixo e enche-lhe os pulmões. O peito da rã incha como um balão. Podia ficar aqui horas a brincar com isto.
Passemos à cirurgia, senhora rã, está com um hálito medonho.

Crutch crutch crutch… A tesoura vai escorregando pela barriga lisa despindo a rã da sua pele, como um vestido. Tiram-se depois os músculos cratch, cratch, cratch… Aí está a impúdica rã, de vísceras à mostra.
Naquela confusão peganhenta de órgãos, sobressai o estômago, enorme bola esbranquiçada, redonda. Vejamos o que há cá dentro…
Com muito cuidadinho, a Alfacinha abre-o e retira de lá os restos da última ceia do anfíbio: uma espécie de pasta filamentosa com umas coisitas mais rijas pelo meio… Estou curiosa! Qual a última guloseima da senhora rã? Junta as peças debaixo de uma lupa e descobre: uma asa, o traseiro de um insecto e… dois grandes olhos amarelos. Não acredito: é uma abelha! Ou… era!
Ficou perplexa a Alfacinha perante a evidência de uma cadeia alimentar.

Deixa-se então aqui uma mensagem de homenagem à abelha que joga às escondidas e à rã, morta em plena digestão.

domingo, 9 de março de 2008

A voté!


sexta-feira, 7 de março de 2008

O Moulin Rouge chegou à Opéra Garnier

Depreeeeeessa!!
Com umas quantas cotoveladas e atropelos, as duas lá se conseguiram infiltrar na fila para os bilhetes de última hora.
E como duas princesas, subiram as escadarias da Opéra Garnier, de bilhete em punho.
- Bonsoir Mesdemoiselles, dernière porte au fond.
De princesas passaram logo a Gatas Borralheiras, quando olharam para os seus jeans e se viram entrar para a plateia…
Incomodaram as senhoras perfumadas e os senhores de fatinho com os seus sacos de écolières cheios de livros, até se instalarem nos seus lugares, incrédulas: segunda fila, atrás do maestro. Perfeito.
O espectáculo começou: The Rake’s Progress, de Stravinski.
E não é que, a páginas tantas, o palco da Opéra Garnier se transformou no palco de um bordel… As duas, que esperavam vestidos de cauda e reflexos de tafetá, viram surgir em cena meninas e meninos semi-nus, numa lingerie cintilante, ligas rendadas, perucas vermelhas e piercings nos mamilos, são mesmo bons os lugares da segunda fila!. Meninas e meninos já pouco vestidos foram-se despindo, enquanto trocavam gestos íntimos… E para alegrar um pouco isto tudo, umas moças enfeitadas de penas e brilhantes dançavam, de peito ao léu, levantando pernas e agitando braços.
Espera, não devo estar a ver bem, ali ao canto estão dois rapazes de fio dental no rabiosque convencidos que conseguem procriar! Mas estava a ver bem sim senhora! O encenador deve ter querido ser moderno e politicamente correcto! Em contrapartida, quem não estava a ver nada eram as suas vizinhas perfumadas, que liam fixamente as legendas lá bem no alto… Ainda ficam com um torcicolo, deviam olhar para a frente, vejam: quanta cor, quanto movimento!
E a cena durou. Nada de espirros, nada de tosses, nada de cadeiras a ranger. A Opéra Garnier gelou em frente a uma gigantesca orgia explícita e provocadora.
Quando as luzes se acenderam, as duas infiltras ainda surpresas estavam mortas de riso, a olhar para a plateia: média de idades nos 70 anos, casacos de peles e bengalas… Até havia um senhor vestido à século XVII: colete, lenço ao pescoço, calças pelos joelhos e collants, cabelo branco aos caracóis apanhado atrás, só faltava falar em verso… O que pensará esta gente toda? As duas bem aguçaram os ouvidos, mas as únicas palavras que ouviram foram «que cantores extraordinários», «a música é magnífica» …
A segunda parte recomeçou, quase ninguém deixara a sala. Depois da tempestade: o sol, tudo voltou aos quadros habituais.
É de crer que todos regressaram a casa tranquilizados com a moral final:
“For idle hands and hearts and minds, the Devil finds a work to do.”
E um grande aplauso encerrou o espectáculo.

Mas fica a dúvida: será que os espectadores sabiam ao que vinham?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

E já lá vão vinte!

Bem se tentou escrever qualquer coisa de jeito a propósito dos vinte anos da Alfacinha… Mas depois de ver o que a cantora Lorie tinha para dizer sobre o assunto… Impossível de alinhar duas… Todos os esboços de frase pareciam superficiais ao pé desta extraordinária canção.
Dá-se então aqui a palavra à Lorie.


À 20 ans

À 20 ans, on se sent
Encore une âme un peu fragile
Mais pas si docile
On apprend, poliment
À contrôler ses impatiences
Et sa belle insolence
Mais je sais
Que l'amour me guidera
Mais je sais
Que la vie continuera ses bienfaits
Que mon étoile là-haut
Ne me lâchera pas de sitôt

À 20 ans
On est invincible
Tipo super-herói ?? Que boa notícia!! Estou ansiosa para descobrir os meus super-poderes!!
À 20 ans
Rien n'est impossible

Confirma-se a história do super-herói… e daí então o cenário psicadélico do clip… Isto faz tudo sentido!
On traverse les jours, en chantant
Ah está bem… super-herói de um musical…
Et l'amour c'est le plus important

À 20 ans
Gentiment
On oublie les bonnes manières
Mas que lindo oximoro… e que gracioso eufemismo… a Lorie é uma poetisa nata!
Et toutes les galères
Então, Lorie ? Já te está a puxar o pezinho para o calão?
On comprend, fatalement,
Que Cendrillon jette la pierre
À la vilaine sorcière

Hum… escapou-me aqui alguma coisa… esta não percebi. Talvez ainda sejam muito recentes, os meus vinte aninhos…

Mais je sais
Que l'amour me guidera
Mais je sais
Que la vie continuera ses bienfaits
Que mon étoile là-haut
Ne me lâchera pas de sitôt

Mudança de pronome pessoal… Efeito de estilo ou será que só a Lorie tem uma estrelinha lá em cima?

À 20 ans
On est invincible
À 20 ans
Rien n'est impossible
On traverse les jours, en chantant
Quand l'amour c'est le plus important

Que estranho, tenho a impressão de já ter lido isto…

À 20 ans
On ose tout dire
Insouciant
Mais avec le sourire

Sim, é preciso ser sempre amável
On traverse les jours, en chantant
Já tenho 20 anos há cinco dias e ainda não tive a impressão de viver num Música no Coração…
S'il faut parler d'avenir
Sachez que l'on est bien assez grand
À 20 ans


Même si l'on se sent tellement fort et différent
À 20 ans,
Parfois dans les remords
On se sent
Perdu en désaccord

Sim, as contradições no seio do seu ser…
Pleurer le grand amour, en chantant
Esta ainda não consegui, devo ainda ser muito inexperiente nos vinte anos… é que cantar a chorar… então e os lenços de papel, o ranho, os olhos vermelhos, a voz a tremer… não, ainda não consigo fazer tudo ao mesmo tempo. Não perco a esperança!
Il viendra un jour il faut du temps
Ah, pronto, estou mais descansada. Obrigada Lorie! Lá está, sempre a palavra certa na altura certa!

À 20 ans
On est invincible
On se rend
Parfois impossible
On traverse les jours, en chantant
Et l'amour c'est le plus important
À 20 ans

On ose tout dire
Insouciant
Mais avec le sourire
Pleurer le grand amour, en chantant
Il viendra un jour il faut du temps
À 20 ans
Fenomenal. Rico e profundo poema, tão anaforicamente expressivo. Fenomenal.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Céu azul, Barbies e atropelos

Numa destas tardes de céu azul, passeava-se a Alfacinha alegremente pelo Pont Neuf fora, numa animada e gesticulante conversa. Gente por todo o lado, um fresquinho que gela os lábios, bref, Paris no seu melhor.
Eis senão quando, sai-lhe inesperadamente e de rompante uma criancinha vestida de Barbie da retaguarda. Agarrada à sua trotinete, a menina cor-de-rosa arrisca-se numa ultrapassagem de risco, entre a Alfacinha e a borda da ponte. A impaciência habitual dos condutores!
E como se não bastasse, a trotinete trazia um atrelado: a mãe da encantadora criancinha que, enervada com o trânsito pedonal, resmunga «Elle n’a aucune vision périphérique!».
Que handicap... Tenho de arranjar uns espelhos retrovisores!


(foto daqui)

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

20h50, Estação de Saint-Michel

Acabadinha de sair do sapateado, ai que não posso com uma gata pelo rabo…, a Alfacinha deixa-se cair num banco à espera do metro. 4 minutos…

A esta hora, a estação está vazia. Ou quase.
A esta hora, a estação torna-se refúgio para os mendigos do bairro, velhinhos gorduchos ou escanzelados, barbudos... Clochards, que quase fazem parte da cidade, não passa um dia que não veja um…
A estação muda de cheiros. Desta vez, já não perfumes. Desta vez, cheiros orgânicos.
E pensar que há umas horas, sapatos altos, carteiras e óculos escuros…
Sentados, de olhos vagos, deitados, enrolados em sacos-cama, de costas voltadas, abraçando a sua solidão.
… gravatas, sobretudos e cachecóis…
E lixo. Restos. Garrafas. Páginas de jornal pelo chão. E ratos. Ratos que percorrem a estação de um lado ao outro, com rápidas escalas pelos caixotes de lixo.
No outro cais, o mendigo
- Eh!
Como se começasse uma conversa com o do lado,
- Concitoyens, concitoyens…
E o outro nada,
- Mes concitoyens. Mes concitoyens…
E levanta os braços,
- Eh! Ils se lèvent tôt le matin… les concitoyens… pour aller prier.
E pensar que iluminações de Natal, que cadáveres de árvores de Natal na rua, a fechar uma época feliz, pensar que lá fora saldos, restaurantes e cinemas…
- Mais le temps qu’ils aillent chier… qu’ils aillent chier… Qu’ils aillent chier !
Entusiasma-se com o silêncio incómodo da estação, com olhos que não o olham, que o evitam, com os ipods que se ligam e os auscultadores que vedam os ouvidos,
- Le temps qu’ils aillent chier, c’est déjà 10h30 ou 11h. Des bons chrétiens. Bons chrétiens. Les concitoyens. Mes concitoyens… concitoyens…
E um silêncio, um compasso de espera, talvez uma resposta, talvez uma voz, talvez alguém, quem sabe, talvez alguém que o ouça e lhe responda: oui, oui, les concitoyens, des bons chrétiens, toi aussi, bon chrétien…
- Je suis moi aussi un bon chrétien, bon chrétien… les concitoyens… mes concitoyens…

Chega o metro. A Alfacinha entra. Eles ficam.
En attendant Godot.

Ah! É verdade! Bom ano!

Photo daqui.