segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Quinto e último dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

Foram só cinco dias. Cinco dias para os meninos conhecerem um laboratório. Um laboratório a sério.

Em cinco dias, assistiram a quatro conferências. Primeiro, uma de um professor americano do MIT, vindo apresentar o seu estudo sobre o canto dos pássaros. Impecável o senhor, estilo négligé pensé, extremamente correcto, frases escorreitas num inglês exemplarmente articulado. Uma exposição quadradamente construída, frases mecanicamente encadeadas, «ok?» semeados aqui e ali para captar a audiência e 20/20 na manipulação da régua de apontar. Um sorriso inabalável, uma expressão serena, mesmo ao mostrar fotografias como esta: um pássaro com eléctrodos espetados na tola, que dificuldade tive eu em abafar o riso!




É uma pena, vê-se muito mal...








Outro dia, foi um japonês do laboratório a apresentar o seu novo microscópio. Num inglês incompreensível, num tom monocórdico, lá foi debitando o seu trabalho, por detrás dos seus enormes óculos redondos e do alto do seu metro e meio.

As duas outras conferências foram dadas por jovens meninas, pouco mais velhas que a Alfacinha. Em inglês, mesmo que a audiência seja toda francófona, snobismo?, coradinhas, inseguras. E a Alfacinha lá atrás, solidária.

E em todas estas conferências, uma assistência activa. Perguntas a toda a hora. Novas ideias, sugestões. Críticas. Sorrisos cépticos. Sente-se o borbulhar de cabeças, que questionam o que está a ser apresentado, nos seus princípios, nos seus métodos, nas suas conclusões. Sente-se o borbulhar de cabeças que têm, ali, novas ideias para as suas próprias experiências.

Numa das conferências, expunha-se um artigo recentemente publicado por um centro de investigação americano. Sem disfarces, foi a competição nua e crua.
- Já viste as concentrações que usaram? É impossível que tenham tido estes resultados.
- Entregaram o artigo em Julho e publicaram em Setembro… Há cunha!
Explodiram as críticas, os risinhos irónicos, os abanares de cabeça. E no fim, todos saíram da sala pouco convencidos das novas descobertas anunciadas no dito artigo.

Foi este ambiente novo que a Alfacinha conheceu, durante esta semana.
Muita determinação e paciência viu naqueles corredores. Numa tarde, viu a L mudar 18 vezes de pipeta e encolher os ombros ao dizer «Hoje é um mau dia, está muita humidade por isso quando faço as pipetas não me saem todas do mesmo tamanho. Tenho de recomeçar!»
E sempre muito entusiasmo, muito espírito de equipa e simpatia.



- Então K, parece que há uma vista fabulosa lá em cima…
- Pois é! Venham daí, vou-vos mostrar.
Então, K levou os dois ao terraço por cima do nono andar da ENS, em pleno 5º arrondissement. Uma vista absolutamente deslumbrante naquele fim de tarde gelado. Paris a toda a volta: a torre Eiffel, a Défense, a île de la Cité, a cúpula do Pantéon, o Sacré Coeur, a bibliothèque nationale de France, a Place d’Italie, o Observatoire, Montparnasse…
Assim se despediram do estágio.



Como prometido, aqui ficam fotografias das experiências do outro dia: pintalganço de neurónios.


quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Terceiro dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

Hoje a Alfacinha viu neurónios. De lágrima ao canto do olho.

Primeiro, pintaram com uma proteína verde os neurónios que queriam identificar. Depois, pintaram as sinapses com uma proteína vermelha. O resultado foi uma imagem colorida, onde se desenhava uma impressionante rede.

Ali estavam eles, verdadeiros, vivos, neurónios mesmo, neurónios a sério. Árvores infinitas de ramificações serpenteantes.

Depois, encostou-se uma pipeta a um neurónio, e com um beijinho abriu-se um buraquinho. Injectou-se então uma pequena estimulação e, em troca, o neurónio enviou um potencial de acção.

Ali estava ele, o potencial de acção, uma pequenina explosão eléctrica, um soluço, aquela correntezinha responsável da actividade do nosso cérebro.

Maravilhados, S e a Alfacinha olhavam para o ecrã do computador onde se revelava a natureza, com a sua misteriosa organização. Comovente.

Enquanto não vêm estas imagens, aqui ficam outras, do chamado Brainbow. Recentemente, um investigador conseguiu arranjar maneira de colorir cada neurónio: cada um tem o seu tom, o que permite diferenciá-los.


Arte?


(clicar nas imagens para ir ao site de origem)










Então, quantos comovidos?

E agora especialmente para o mano: dissecções do cérebro florescente dos ratinhos (não encontrei fotos exteriores dos ratos...). À direita só aparecem os neurónios que funcionam com glicínia (cerebelo e medula espinal), à esquerda todos os que funcionam com GABA (todo o sistema nervoso).

Nota: glicínia e GABA são neurotransmissores, ou seja moléculas que estabelecem a comunicação entre dois neurónios ao nível da sinapse.

http://www.biologie.ens.fr/neuroinh/

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Segundo dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha.

- Hoje vamos extrair o hipocampo de cérebros dos ratinhos que nasceram ontem. Vêm comigo buscá-los à reserva de animais?

No segundo seguinte já iam a caminho das caves os dois estagiários, S e a Alfacinha, acompanhados da investigadora australiana, K.
Chegados à entrada, K abre uma porta…
- Podem-se sentar aí, para calçar as meias esterilizadas.
S e a Alfacinha sentam-se, de cada lado de um saco de papel que estava pousado no banco.
- Podes-me passar o saco, S.
- Que estranho, está quente… O que há aqui dentro?
- Ah, são ratinhos mortos.
Olharam para o banco, depois um para o outro e desataram a rir os dois novatos. Quando virmos alguém com sacos destes já sabemos o que transportam!

As preparações para a entrada na reserva de animais continuaram: vestiram um fato-macaco descartável, extremamente sexy, lavaram as mãos meticulosamente, calçaram luvas, voltaram a lavar as mãos… E quando prontos, entraram.

Um corredor, um cheiro pestilento, várias salas com estantes a toda a volta, repletas de caixas transparentes onde ratinhos a saltitar. E numa delas, oito ratinhos recém-nascidos. Olá bichinhos! À primeira vista, pareciam ratinhos normais. Mas pondo um capacete especial, a coluna vertebral de alguns aparecia… verde! Ficou fascinada a Alfacinha, boquiaberta. Quem terá mais ar de extra-terrestre: eu com esta fatiota toda e este capacete na cabeça ou estes ratinhos florescentes?

K pegou em cinco deles e levou-os para o laboratório, onde outra investigadora, japonesa, L, se preparava para a operação. Bata, luvas, instrumentos: tudo a postos.
S: «Não percebi como vai matar os ratinhos...»
E L, pronta para a operação, de tesoura na mão, olha para S com cara de precisas-mesmo-que-te-explique-oh-maçarico-?. Não tiveram tempo de pestanejar que zás, já L tinha dado à tesoura e a cabeça do ratinho fora decapitada. Isto é que é despacho! Recolheu então as cinco cabeças, que continuaram a mexer na caixa de Petri.
L, imperturbável, prosseguiu com o massacre debaixo do microscópio, sempre a explicar o que fazia.
S contorcia-se com caretas.
E a Alfacinha despedaçava-se num ataque de riso incontrolável.
Ratinhos recém-nascidos florescentes, daqui.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

O primeiro dia do primeiro estágio em laboratório da Alfacinha

«Régulation présynaptique de la transmission inhibitrice par les transporteurs neuronaux de la glycine»
Quero este.
E às 9h30 em ponto, aí estava fresca a Alfacinha, pronta para começar. Um olá ao colega, um bom dia ao coordenador de estágio, e vamos a isso que se faz tarde.
Veio então a explicação do objecto de trabalho. Obscura…
A manhã passou, sem que o nevoeiro sobre a glicínia e seus segredos se dissipasse, e sem que fosse possível qualquer contacto com o colega de estágio, ele mesmo extremamente obscuro…
Era preciso um milagre para desobscurecer tudo isto.

«Viram que há uma prova de champanhe lá em baixo? Vão lá enquanto eu trato aqui desta solução para logo. E vão chamar ali aquela investigadora, ela adora champanhe.»
Não disseram que não, os dois pupilos. Isto começa bem!
Acompanhados da dita investigadora, uma australiana redondinha, dirigiram-se para a bancada onde um professor de genética, membro fundador do clube de vinhos da école, os acolheu com o maior prazer. Um copito a cada um, e toca a andar. Sucederam-se então os vinhos.
- Não sei se querem provar este também…
E a australiana de braço estendido:
- Siga! Vá lá meninos, têm de provar.
Ao que os dois obedeciam, dever de estagiário face ao seu superior, não é?
Graças ao despachanço da australiana, provaram a montra inteira: seis variedades de champanhe francês, duas de vinho branco e só para rematar um tintinho. Sempre com as devidas explicações.
Um pouco atordoados, regressaram ao laboratório. E, feito notável, conseguiram, pela primeira vez, trocar umas palavras. Comme quoi le vin, ça crée des liens!

- Então meninos, a prova de vinhos? Bom, estive aqui a preparar o material, agora vão injectar os ovócitos de sapo, com esta micropipeta, na parte esquerda daquele buraquinho pequenino ali, conseguem ver? Depois têm de rodar estas duas manivelas ao mesmo tempo, no sentido dos ponteiros do relógio, cuidado não se enganem, para espetar lá dentro os eléctrodos, está bem? Mas tem de ser muito devagarinho…
Mau Maria… Isto apresenta-se complicado.
E com muita concentração, a Alfacinha lá brincou com os ovócitos, sem grandes danos materiais.
E até lhe pareceu que tudo foi ficando mais claro durante a tarde.

Conclusão: o vinhito/champanhe foi a salvação do dia.

domingo, 16 de novembro de 2008

Da dificuldade de dizer qualquer coisa quando se tem muito que dizer.

Primeiro, ataca-se a coisa com boa vontade. Vamos a isso. Alinham-se duas palavras, duas ideias, três com sorte, mas não, não sai nada. Não é isto. Apaga-se tudo. Volta-se a tentar. Vêm as mesmas palavras, sempre as mesmas, melgas, as mesmas ideias, coxas. Não, também não é isto. Apaga-se tudo. Assim se pode passar a tempo. E quanto mais tempo passa, mais coisas ficam por dizer. Depois, ataca-se a coisa com mais agressividade. É desta que sai. Começa-se com alíneas: tudo o que é preciso assinalar.

- Que a Alfacinha entrou em Ciências Cognitivas na École Normale Supérieure de Paris.

- Toda a sua felicidade por ter realizado o projecto que a levara a Paris. Evitar lamechices, mas mostrar que lhe vieram as lágrimas aos olhos quando, do fundo do seu futuro casaco, recebeu o telefonema dos seus pais a dizer que o seu nome estava na lista dos admitidos.

- A série de buffets de boas vindas: Collège de France, École Normale… Junto à mesa dos petits-fours, numa mão o copo de champanhe, da outra um gesto ao cabelo de Quem-somos-nós.

- O seu orgulho ao exibir o cartão de estudante para o módico desconto na livraria. É de se perguntar se foi mais pelo desconto, ou pelo cartão.

- Toda a sua emoção quando entra nos locais, quando se move lá dentro sentindo que já começa a ser o seu espaço, quando se entretém nas aulas de filosofia na Salle des Actes a ver os nomes dos que por lá passaram, e cora, e se sente pequenina, tão pequenina.

- A admiração da Alfacinha quando vê em bibliografias os nomes que vê nas portas dos laboratórios.

- O reflexo da Alfacinha de olhar para o rés-do-chão do prédio de biologia quando é noite cá fora, e se vêem todos os laboratórios, todas as pipetas, tubos de ensaio e companhia provocadoramente em exposição.

- Os ataques de riso da Alfacinha quando acaba um mail com Cordialement.

- A vontade da Alfacinha de pôr uma música pimba a tocar numa sala onde dezenas de pessoas trabalham horas a fio num silêncio tumular, sem levantar a cabeça.

- A vontade da Alfacinha de inaugurar com um bom desenho ou um bom slogan filosófico as mesas completamente brancas das salas de aula. Ou simplesmente a clássica pastilha elástica na cadeira, ou no puxador da porta da casa de banho, numa tentativa de tornar o sítio mais parecido com qualquer faculdade.

- A estranha fauna que por lá anda: jovens rapazes que fazem corridas de Rubik Cube de 12 faces no recreio, meninas que se sentam no chão a brincar com papelinhos no meio do ginásio convertido em discoteca, pessoas que leram o Harry Potter em grego antigo, grupos de investigadores que à mesa da cantina têm a seguinte conversa: «Foi com FRET ou com FRAP que fizeste a experiência?», «A da KDEL e Rab5? Foi GFP simples. Estou tão entusiasmado com isto, não durmo há uma semana, o CNRS devia ter uma linha telefónica 24h para os investigadores…»

- Bref: sítio formidável, e etologicamente interessante.


Mas isto são apenas alíneas, ideias dispersas, sentimentos difusos que correm todos os dias na cabeça da Alfacinha. Tentam-se encadeamentos, textos propriamente ditos, mas tudo sai insuficiente, impreciso. Como tornar isto articulado, genuíno? Até à data, solução não encontrada.





A Cour Aux Ernests: bustos a toda a volta, um laguinho com peixes (os ditos Ernests) ao centro.

A Salle des Actes: com placas de mármore a toda a volta onde estão gravados os nomes dos que por cá passaram. Agora que estas já deram a volta à sala, uma nova série de placas de acrílico começa o seu périplo.