terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Arqueologia corporal

Hoje não há desculpas, vou mesmo à aula de danças de carácter.
Andou com preguiça, a Alfacinha. Um dia era o trabalho, outro dia era o pingo no nariz, qualquer coisa a impedia sempre de fazer a sua primeira aula de carácter. Primeira desde a última vez, já há uns bons seis anos. A Alfacinha era fã destas danças tradicionais da Europa central. De punhos nas ancas e nariz empinado, a Alfacinha adorava avançar com ar decidido e bater com os calcanhares. Grandes recordações, de tempos remotos de bailarina…
E foram essas óptimas recordações que a levaram à dita aula de carácter.
- Trouxe alguma roupa para fazer a aula?
- Não…
- Não faz mal, faz assim mesmo. Levante as calças e pode ir para a barra, vamos começar o aquecimento.
E voltaram todas aquelas palavras, lembranças já bem empoeiradas. Rond de jambe, battement, dégagé, todas as posições de pés, de braços… tudo se foi desenterrando, voltando à memória da Alfacinha.
Só que a coisa começou-se a complicar: pernas no ar, estica daqui, puxa dali, maldita camisola de lã, gola alta, manga comprida, flecte o pé, afasta o joelho com o cotovelo, faz força menina, braços a enrolar as pernas, aperta bem, oh diabo no qu’é qu’eu me meti, agora em meia-ponta, levanta os braços, fica direita, aperta os glúteos, celulite, melhor dizendo, levanta uma perna, estica, que tal levantar a outra perna também, não?, levanta mais, só isso?, mais um bocadinho e fico sem tendões amiga, braços na barra, faz um ângulo recto entre as pernas e o tronco, espetar o rabo a bem dizer, vou-te carregar aqui nas costas para esticar bem… e aquele som das costas a estalar... e era só o aquecimento!
Mais corada que um tomate e com as pernas a tremer que nem varas verdes, a Alfacinha lá conseguiu sobreviver à barra, amanhã ao acordar é que se vão ver os estragos… Seguiram-se as danças propriamente ditas. A Alfacinha foi então desenterrando da sua memória corporal movimentos, posições e gestos que noutros tempos foram automáticos. Reencontrou também o prazer das danças de carácter e o carácter qui va avec.
No fim, já sem fôlego, a Alfacinha sentia-se um boneco Michelin numa aula de ballet. Saiu com as pernas cambaleantes, saiu atordoada, em vez de abrir a porta para as escadas abriu a do balneário masculino, também já não podia corar mais.
Regressou a casa a pensar na fatiota que vai ter de arranjar.
Quem diria que me ia vestir de bailarina outra vez!
O que é:
O que será (há que ser optimista!):

www.balletstudio.com.au/national_character.php

E aqui, a dança que a Alfacinha mais gostou e da qual ainda se lembra, com muita saudade...

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

À porteira, já merecia.

“Mariana, se Vier ouge trabalhar venho mais tarde. um Bom dia Para si.”
Afinal sabe que sou Mariana e não Maria. Mas por que carga de água me chama ela Maria, de cada vez?
Ora hoje que a Alfacinha estava de pé, vestida e prontinha à hora de a porteira vir dar um jeitinho à sua casa, a dita não pode. Sim, porque num dia de fraqueza, daqueles em que custa sair da cama, que custa abrir os olhos, custa, custa muito, a porteira apanhou a Alfacinha de pijama: “A uma hora destas ainda de pijama? Quantas portuguesas há em Paris de pijama às 10h30 da manhã?” Isto de sobrancelha arregalada, olhando de cima a baixo a Alfacinha, desde o cabelo em espantalho, aos olhos semi-cerrados, ao pijama torto, aos pés enchinelados…
A porteira da Alfacinha tem sempre este ar desconfiado, cara de quem diz hmm-esta-anda-praqui-sem-fazer-nada. Desconfia da falta de aulas à terça de manhã (“Então Maria, hoje não tem cours?” “Pois não, como sempre.”), desconfia do curso da Alfacinha (“Mas não era para ter acabado no ano passado?” com cara de quem desconfia que a Alfacinha andou por aí a passear, ah mandriona, e atrasou-se nos estudos), desconfia que a Alfacinha não tem dinheiro na conta quando a máquina por erro comeu o cartão. O pior é que se é sempre obrigado a justificar, tal é o ar indignado da senhora dona concierge. E assim que uma justificação é esboçada, a porteira acena logo a cabeça, “Oui, oui, oui!”, como quem diz, ora-essa,-não-precisa-de-justificar,-era-só-para-a-picar-um-bocadinho-e-pelos-vistos-resultou. Safa!
Sempre à coca, de nariz sempre a farejar, pior que um detective, tudo para a porteira é motivo de desconfiança. “Eu comecei a ver um jeune garção vir todos os dias à cave lá do prédio… Tous les jours. Não gostei. Eu bem via, da minha janela, que ele descendia lá para baixo. Até que chamei os donos do prédio, para eles porem lá outra fechadura.”
Para além de desconfiada, a porteira é coscuvilheira, duas características que facilmente andam lado a lado. A cada visita a casa da Alfacinha, aproveita sempre para contar as últimas do prédio, à espera de um échange de informações. A senhora de cima que foi deixada pelo marido, os árabes do kebab que dizem sempre olá… Segura a tua língua, resiste!! E volta e meia, desvenda o seu cúmplice ouvido: “Já tinha dito ao meu marido, a Maria deve estar quase a voltar de vacances.” Sim, porque um coscuvilheiro traz sempre outro atrás.
A porteira deixou de prender o avião no aeroporto de Charles de Gaulle. Uma vez perderam as suas valisas, depois chegaram todas rasgadas e amassadas, eles não fazem atenção nenhuma, tudo ao pontapé, que o Nutella que levava para a sobrinha escorreu por cima da camisa para a cunhada, que tinha comprado ali na Camaieu, a 26 eros, veja só. Não, Charles de Gaulle outra vez não, Deus a livre! Agora só Orly. Aliás, não. O que a porteira prefere mesmo é o autocarro. Aí vai descansadinha até Faro. É uma beleza. Só a comida é que não é grande coisa, por isso ao regresso viaja sempre com a sua tupperware de galinha de cabidela, ora pois pois. Assim sim, é uma bela viagem, tranquille.
Todos os anos, a porteira volta a Faro um mês no verão, com marido e filhos, marido por sinal mestre de obras. De tão cliché, até parece impossível! É um prazer esse mês. Ficam lá em casa, ela passa o mês todo a limpar a casa. Ai que bom, abrir as janelas, pôr a roupa toda cá fora a secar, que em Paris é uma miséria a roupa nunca vê sol. Limpa o pó todo de todos os recantos. Faz jardinagem, fica tudo um brinquinho. Quando as amigas a chamam para sair, ela prefere ficar em casa, a arrumar tudo. Quando chega ao fim das férias, ou seja, quando a casa está realmente impecável, abalam de novo para Paris.
Porque a porteira é realmente a mulher do branco-mais-branco-não-há. Arreda sempre da banheira a família de shampoos e cremes da Alfacinha: se isto fica aqui, os azulejos por trás vão sempre ficar pretos de bolor. E todas as semanas comenta a evolução do bolor nos ditos: sempre a desaparecer a olhos vistos. Assim é que é bom. E tapetes? Para quê tapetes? Só dá um ar sujo à casa. Mas com o aspirador, já ajuda. Uma casa pode estar limpinha, mas se não passar o aspirador não é a mesma coisa. E aquela mancha ali no palier? Aquilo foi a alemoa que aqui esteve antes, punha os sacos do lixo no palier. Oh, aquelas manchas já não saem. Ela bem esfregou, raspou, mas nada! Aquilo foi gordura que ficou na madeira. Já não sai, já não sai.
A porteira tem uma bela casa em Faro, o que é um motivo de inveja dos franceses. Eles que não sabem poupar dinheiro nem trabalhar como nós portugueses, obrigada por me incluir, até que enfim! … será que estava mesmo incluída?, depois ficam para aí todos invejosos. Porque de poupanças, percebe a porteira. Esta echarpe aqui, esta custou 10 eros, mas tem outra igual que custou 30. Anda com esta para não gastar a outra. Ora pois pois.
Para a porteira o bairro é como se fosse uma aldeia. Conhece os carteiros, conhece os ébouiôs - versão aportuguesada de éboueurs que significa homens do lixo - até os convida para ir tomar um café, para agradecer serviços, e dá uma valente gratificação no Natal. E veja só, os carteiros até lhe deixam as cartas recomendadas para as pessoas do prédio, fazem-lhe confiança.
A porteira preocupa-se muito com a sua saúde e com a do marido. Uma vez, cruzou-se com a Alfacinha na rua: “Vamos para o bilan de santé! Tous les cinq ans! Allons-y, allons-y!” E puxou do marido, anda-cá-que-senão-vamos-chegar-atrasados-apesar-de-termos-duas-horas-de-antecedência. Ia com um ar feliz, um sorriso de orelha a orelha. Era o programa do dia, iam tratar deles.
Mas cuidado com a porteira quando ela não está bem disposta ou se irrita com alguma coisa. Perde as estribeiras e desata a dizer palavrões, como se tivesse perdido a noção do peso das palavras. Experimentem perguntar-lhe do caixote de lixo roubado. Sai logo uma lista de palavrões digna de qualquer dicionário da matéria.
A boca da porteira é sempre uma surpresa. Ora podem sair estes palavrões numa verborreia incontrolável, ora saem expressões francesas carrément aportuguesadas. Expressões idiomáticas, daquelas bem francesas que só se aprendem em contexto, saem-lhe espontaneamente.
Um exemplo de integração. E de serviço. Sim porque já lhe deram duas medalhas, da mairie de Paris. Foi lá à mairie, numa bonita cerimónia (qual seria a écharpe?), receber duas medalhas de mérito no trabalho. Que grande honra.

‘Faut faire avec, ‘faut faire avec!



Não é esta, mas até podia... (daqui!)