sexta-feira, 20 de julho de 2007

A Alfacinha descisada

- Então é o inferior esquerdo, não é?

- É sim.

Senta-se a Alfacinha muito a medo na cadeira. Esta inclina-se para trás, vou escorregar daqui para fora!, até que aparece ecrã de computador onde surgem fogos de artifício, praias maravilhosas, florestas frondosas, isto deve ser irónico

Começa-se a equipar o carniceiro, luvas, máscara, óculos, e todos os instrumentos de tortura. É hora de fechar os olhos. Abre então a boca a paciente, muito a medo…

- Está nervosa?

Boa piada, amigo!

E lá começa a tortura. Atira-se ao maxilar da Alfacinha, vai com calminha, espeta para lá agulhas fininhas e compridas, isto dói, mas é para não doer depois, isto dói, mas é para não doer depois, isto dói… E de repente, mais nada.

- Sente alguma coisa aqui?

Abana a cabeça a Alfacinha. Hey, qu’é do meu lábio?

Foi a luz verde para o carniceiro voltar a atacar. Vai à carga desta vez com instrumentos de corte, grrr, este barulhinho foi a minha gengiva a… vá, é melhor não pensar nos detalhes sórdidos… Prossegue com instrumentos cuja forma a Alfacinha desconhece, de olhos bem fechados, de olhos bem fechados, mas cuja função imagina, ele está-me a alavancar o dente. Vá, penso noutra coisa. De que cor é a cadeira do dentista?

- Uma compressa, Paula.

Devo-me estar a esvaziar do meu sangue… Ora bem, quantos são 34x48?... Vou antes contar carneiros: 1 carneirinho, 2 carneirinhos… De que cor é a cadeira do dentista?

- Paula, dê-me o 32.

O que será isto agora? Um instrumento de emergência, para quando fazem algum disparate muito grande? Vá, penso noutra coisa…Será que amanhã vai estar sol? De que cor é a cadeira do dentista?

E continua a tortura. Anda de um lado para o outro o dentista, puxa daqui, empurra dali, vou sair daqui toda deformada, acredita que se me esticas mais o lábio, amigo, ele rasga; Corporación Dermoestética, me aguarde! Vá, penso noutra coisa…Que horas serão? Cheira-me que vou fazer uma convalescença de reconciliação com a Floribella. De que cor é a cadeira do dentista?

E de repente, acalma-se. Então, então?

- Fio, Paula.

Olha este agora armado em costureiro…

- Já está.

Abre os olhos a Alfacinha muito a medo. Até consegui fazer remelas, mas não foi de dormir, de certeza… Tenta sorrir, só meio lábio responde. Tenta levantar-se…

- Pode ficar mais um bocadinho!

Tenta dizer obrigada, se calhar é melhor não, ou ainda deixo cair o maxilar.

Por fim, lá se vai embora, passou-bem ao dentista, como é possível gostar-se de um dentista?, e sai da sala de torturas.

Bolas, esqueci-me de ver de que cor era a cadeira!



terça-feira, 10 de julho de 2007

Vol Air France 2124 à destination de Lisbonne :

A princípio eram três.
O Carlos, homem rijo, muito macho, correntezinha ao pescoço, pelo no peito, bíceps resistentes com marca à camionista. Na sua mão direita, entre o polegar e o indicador, trazia uma tatuagem: Cidana. Cidana, o nome da poderosa brasileira quarentona que trazia pelo braço, está visto que foi baptizada antes da descoberta da Sida!, uma leoa tigresa de vestido decotadíssimo, confundindo-se com a sua pele lustrosa, bem coladinho às suas redondas formas de Michelin. A terceira era a mãe do Carlos, Carlinhos. Saiinha branquinha travadinha, joanete a fugir da sandália fina e um pronunciado sotaque nortenho.
A princípio eram três, a lutar pelos dois lugares ao lado da Alfacinha.
- Fomos os primeiros a chegar e aquela sacana não foi capaz de nos pôr juntos.
- Oh Daninha, mas o teu lugar é já aí na fila de trás.
Tão querido, o Carlinhos, não se quer separar da mamã!
- Ah, mas eu queria ficar do seu lado…
Tão querida, a Cidana, não pode ficar duas horas «longe» do seu Carlos!
- … aqui eu não sento, entre dois homens!
Ah, então era isso… potencial assédio sexual a bordo…
- Oh Daninha, mas senta-te…
- Deixe comigo, Carlos, que eu sei o que estou fazendo.
Arregala o olho a Alfacinha, curiosa para ver como a corajosa e determinada senhora pretendia contornar as normas rígidas do avião. Passados uns minutos…
- Não, não deu…
- Oh Soninha, mas quer que vá para o seu lugar?
Visivelmente, a sogra ainda não encaixou o nome da sua vaporosa nora…
- De jeito nenhum! Entre dois homens!
Vira-se curiosa a Alfacinha para ver quem eram as duas ameaças masculinas. À esquerda um jovem, cara vermelha de tanto abafar o riso, e à direita um chinês gorducho que aparentemente não percebia nada do que se estava a passar.
- Daninha, queres que vá eu?
- Não, deixe.
Ora bolas, devia ceder o meu lugar… Mas imediatamente um risinho maléfico vem aos lábios da Alfacinha: não resisto a uma cena doméstica. E esta, promete.
- Poxa, nem tenho espaço para pousar meus braços… eles ocupam tudo…
- Vê, mãe, o que aturo todo o santo dia. Vida a minha!
- Mas oh Soninha, não quer trocar comigo?
- Não, a senhora fique onde está.
- Agora a culpa há-de ser minha, quer ver? Oh Cidana, isto vai durar as duas horas de voo?
Espero que sim! Está a ficar suculento!
A princípio eram três.
Quando o avião começa a andar, aparece um quarto elemento: uma rapariga nova, cabelos longos L’Oréal e andar balançante, filha de Cidana.
- Ela me pôs bem lá no fundo, na última cadeira em frente ao banheiro. Ali eu não sento.
Agora eram quatro, a lutar pelos três lugares em torno da Alfacinha. Foram então experimentando todas as permutações possíveis de 4 elementos nos três lugares. E de tanto permutarem, conseguiram afugentar o jovem vermelho de riso. Nenhum deles ficou no lugar de origem. Mas ao menos Cidana passou a viagem de mão dada com Carlos que ressonava e a filha de Cidana passou a viagem em amena cavaqueira com a mãe do Carlinhos.


Não resisto a dar um cheirinho da aterragem:
Cidana: Oh meu Santo Deus, meu Jesus Cristo, meu Senhor, segura, meu Deus, segura, por favor segura! Perdoa todos os meus pecados e de minha filha, segura meu Deus, segura meu Jesus Cristo, por favor meu Senhor, segura, seguuuuuuuuuuuuu... O avião pousa… uuuuuuuuraO avião trava… segura, meu Deus, segura, meu Jesus Cristo, perdoa todos os meus pecados e de minha filha!!! O avião pára…
Foi Jesus Cristo que nos salvou!

domingo, 8 de julho de 2007

Os sons da casa da Alfacinha

A casinha da Alfacinha dá para uma rua larga, com muito movimento, logo com barulho. Mas há dois elementos perturbadores bem especiais no que toca a decibéis: os bombeiros, ali, oh pra eles, e uma passadeira, plantada bem em frente às janelas da Alfacinha.
Bombeiros implica tinóni, tinóni a horas variadas. Implica travagens a fundo de pacíficos automobilistas quando lá vai a carrinha disparada e às curvinhas pela rua fora.
E a passadeira… sim, qual o problema de ter uma passadeira por baixo da janela? Pois bem, o problema é que as passadeiras nesta terra estão equipadas de um semáforo. E o semáforo está equipado de um botão. E esse botão, desencadeia uma mensagem sonora para os invisuais saberem quando podem atravessar. E para quem estiver a pensar: mas haverá assim tantos cegos na Rue d’Alésia, a Alfacinha responde: obrigada pela deixa, não tens de quê, ora respondo que não, não há uma densidade extra-ordinária de cegos na Rue d’Alésia. Há é bandos de criancinhas histéricas e à solta aos domingos de manhã que adoram carregar no botão. Ficam depois a olhar para o semáforo, com sorrisos desdentados e aparvalhados, com ar de que-poderosa-que-sou. Da primeira vez, estava a Alfacinha em pleno vale de lençóis… Mas que barulho é este? «Rge… ton… Rue d’Alésia» Mas que raio é isto? Empreendeu naquilo a Alfacinha e ficou em vão a tentar adivinhar que frase era essa que a tirara do seu sono e que a impedia de voltar a mergulhar nele. Não percebo. Levantou-se a Alfacinha de mau humor. Acabou por descobrir que a senhora com uma voz irritantemente calma e educada ia repetindo «Rouge piétons, Rue d’Alésia. Rouge, piétons,…» até ser subitamente interrompida por uma campainha. Agora a Alfacinha diverte-se a fazer playback.
Som bem diferente foi aquele que chegou aos seus ouvidos moles e domingueiros, numa tarde em que lutava contra as suas pálpebras para se manter acordada e estudar. Estava então à sua mesa de trabalho quando… Estarei a ouvir coisas? Estarei a dormir ou a ficar louca? No meio de uma rua deserta, de prédios onde se adivinham pessoas pachorrentas a passear-se de chinelos, de lojas fechadas com grades, do silêncio mais molengo, surge uma musiquinha, um ritmozinho alegre e animado. Vai a Alfacinha à janela, à varanda, qual Carochinha. E lá em baixo, dois homenzinhos, agarrados a saxofones, divertidíssimos, a arrastar umas colunas de som num carrinho de supermercado. Lá iam os dois, sorridentes e dançantes, a dar música ao quarteirão. As janelas iam-se abrindo, uma a uma. Uma a uma iam aparecendo pessoas espantadas, que acabavam por dar à pantufa, e abanar as ancas de fininho.

Dentro da sua casinha, a Alfacinha já se habituou a alguns sons característicos: o plim do micro-ondas, o pchhh da água a ferver quando vem por fora, o barulho do autoclismo, dos canos, enfim, barulhos domésticos. A estes, juntam-se os barulhos vindos dos vizinhos. Um telefone a tocar, atendes ou não?, passos de um lado para o outro, cadeiras a arrastar, um aspirador a aspirar, máquinas de lavar louça ou roupa, de certeza que é para me fazer inveja, e, volta e meia, de noite… madeira a ranger, num ritmo regular, grr grr… grr grr… e depois, pára. Bem por cima da sala da Alfacinha. O soalho não perdoa. Nestas alturas, cora a Alfacinha. Timidamente. Pudicamente. Põe música, pensa noutra coisa, assobia para o ar, enquanto o barulhinho vai martelando ao longe.

Agora com licença, a Alfacinha vai andando: estão a tocar à campainha. Talvez seja o meu João Ratão!




Não, o blog não foi esquecido

Pois é, alguns dias de silêncio durante os quais a Alfacinha andou por aí a passear. Começou com a magnífica viagem a Porquerolles, hão de me explicar como vêem «porco» aqui dentro, e depois, para não perder o ritmo, continuou os passeios por Paris, que também é um sítio bonitinho.

Em Porquerolles, «porque» ainda consigo vislumbrar, agora porco, sinceramente…, reencontrou o calor, o sol, o protector solar, a toalha de praia, os chinelitos e o mar, água parada, quente, transparente, cristalina, paradisíaca, em tons de verde e azul, sem piada nenhuma, a bem dizer, sem aquela emoção das enormes vagas, ups!, ondas geladas que cortam a respiração quando tentamos entrar no mar, pé ante pé.

Em Porquerolles, mas «porque-rolles»… e o que fazes do «rolles»?, extasiou-se perante a flora Mediterrânica. Ou muito me engano, ou isto é erva, herbus vulgus, não? A cada dez passinhos, a professora parava, colhia um raminho e…
Regardez! Quelle magnifique carotte sauvage, daucus carota!
Sim, porque depois do sorriso, a professora juntava sempre o nome da erva em latim, para ser mais exacta. Foi assim que a Alfacinha foi aprendendo nomes como salsepareille, barbe de Júpiter, griffes de sorcière, posidonie, lentisque, arbousier, cinéraire, criste, euphorbe, etc, etc. Se a viagem fosse mais comprida, ainda me punha a pastar…

Em Porquerolles, não, francamente, não vejo «porco» aqui dentro, lamento imenso, também se extasiou com pedrinhas, com o encantador e resplandecente mica-schiste. Extasiou-se enfim com a fantástica ilha, que é na verdade um synclinal-qui-a-basculé-vers-le-nord, eh oui, j’m’la pète!

Até parece que gosto de geologia e de botânica…


E chega então a Paris a Alfacinha, bronzeada, com sal no cabelo e areia nos bolsos: chuva, frio. Não, socorro, tirem-me daqui, antes as plantinhas e os calhaus! E no dia a seguir à sua chegada, apanha logo com a Gay Pride no Boulevard Saint Michel, corte profundo com a natureza profunda da qual saía. E desde aí, lá se foi habituando de novo a Paris: cinemas, passeios, danças bretãs, etc. Não custa muito, confesso…

Agora prepara as malas para Lisboa.
Vou ter saudades do cão que ladra quando abro as portadas, do meu feijão com um metro de altura, do meu frigorificozinho, do elevador falante «Cinquième étage!», dos croissants e companhia... mas paciência, tenho encontro marcado com o sol.

Porquerolles

Oh maninho, e dizes tu que aquela era a única fotografia de jeito... Dor de cotovelo, digo eu!