quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Where the streets have no name

Natal é um labirinto. E quem se aventurar aqui de carro perde-se. Com certeza. Quem se aventurar nas ruas, que parecem nascidas de geração espontânea, o mais certo é ter de se abeirar e perguntar a um qualquer senhor, desses sentados numa cadeira de jardim à porta de casa a apanhar sol, perguntar a um qualquer senhor: “Cadê a Rua Berilo Wanderley?”. Aí o senhor puxa de toda a sua sabedoria, de todo o seu passado de Potiguar, pois só eles conhecem Natal, não é, e responde: “Olhe amigo…”, e medita… “Olhe amigo, eu penso que é p’ra lá”. E estica penosamente o dedo até ao próximo cruzamento, onde você capta logo outro velho a quem pedir ajuda até ao próximo cruzamento. “Obrigado, amigo!” E segue.
É possível que num destes passeios, quando se pensa perdido num bairro, uma rua seja subitamente interrompida por uma duna. Por uma parede de dunas gigantescas. Simples, o bairro acaba ali. Até a universidade é construída sobre as dunas. Consegue imaginar a sensação de sair das aulas e pisar areia? Consegue imaginar a sensação de entrar numa sala de aula e sacudir a areia das havaianas?

Dunas de Genipabu, a norte de Natal, ao fundo.


É certo que num destes passeios você tenha de se desviar de buracos no chão (se contar com a ajuda de um co-piloto que anuncie “Buraco” e aponte para o mesmo simultaneamente, melhor ainda) ou de desacelerar para passar uma lomba (ao que o co-piloto diria “Lomba”, apontando para a dita). É certo que num destes passeios você arregale a sobrancelha para reflectir sobre o paradoxo de uma cidade cheia de buracos no alcatrão mas cheia de lombas para limitar a velocidade. E se utilizassem o alcatrão das lombas para preencher os buracos? E porque as lombas nunca têm buracos? E para quê limitar a velocidade com lombas se os buracos servem tão bem, até furam os pneus dos mais atrevidos?
É possível que num destes passeios esteja a chover. Aí a tarefa complica-se e põe à prova as capacidades anfíbias do carro. As poças de água tornam-se piscinas, alagando ruas inteiras com vários centímetros de água. É possível que você queira ir almoçar, e nenhum dos acessos ao restaurante esteja transitável. É possível que você esteja dentro de um ônibus e o trajecto tenha de ser desviado de última hora.


Uma poça de água que já não desaparece, nem quando o céu está azul e o ar quente...


Aliás, se você está no ônibus, é porque antes disso já penou para apanhar o ônibus. Há muitos ônibus. Muitas direcções, muitos percursos de ônibus. O princípio da apanhagem de ônibus é: para começar, acertar na paragem de ônibus (que às vezes pode ser um poste de electricidade à beira de uma via rápida, sem nada indicado), olhar para todas as palavras escritas no ônibus (e chegar à conclusão que não se encontra nem o número nem a direcção do ônibus), meter a cabeça no ônibus e perguntar ao motorista do ônibus: “Passa na passarela da Potilândia?”, ao que ele responde: “Oi?”, “Pa-ssa na pa-ssa-re-la de Po-ti-lân-di-a?”, “Não passa não, moça. Só o 33, 44, ou os que vão para Cidade Satélite, Parnamirim. E alguns alternativos, também. Só perguntando”, “Tá, obrigado”. Só no ônibus seguinte é que é possível ter mais sorte. Entretanto já foi confraternizando com as outras pessoas da paragem de ônibus, muito calor, muito trânsito, talvez vá chover hoje de tarde. E quando finalmente consegue entrar, no ônibus, senta-se. Senta-se, ora pois. Aqui os ônibus só têm lugar sentado. E mesmo que esteja tudo ocupado, há sempre um gentil cavalheiro que se levanta para deixar o seu lugar. Para parar, é só puxar uma corda que um apito estridente avisa todo o mundo que alguém quer sair na próxima paragem de ônibus.
Passado o semáforo, que fica sempre depois do cruzamento, aí está a paragem. Aí você sai e anda até ao destino, cabelos no vento natalense. Anda pelas ruas anónimas, pelos passeios em patchwork. Aqui, os donos das casas são responsáveis pelo seu passeio. Numa mesma rua, sucedem-se passeios de azulejo preto, de azulejo branco, de terra, de pedra, de restos de tijolos, de cimento… E assim você anda com as suas havaianas a tentar evitar o desastre de aterrar de bunda no chão (que por vezes acontece aos melhores, não é). Você vai pousando o pé bem devagarziiiinho no chão, ziguezagueando entre os cestos de ferro forjado, onde se deita o lixo, semeados em frente às casas.
E nestes périplos, é muito possível você ver cenas insólitas. Acontece ver um burro a andar sozinho numa via rápida. Acontece você ver um homenzinho de bicicleta em contramão na mesma via rápida. Acontece você ver um homenzinho a empurrar um carrinho com coco verde para vender na praia. Acontece você ver um homenzinho a empurrar um carrinho para vender música que vai tocando (provavelmente: “Você não vale nada mas eu gosto de você…”). Acontece você ver um homenzinho a empurrar um carrinho com bustos de manequins, onde faltam os bikinis que ele acabou de vender na praia. Isto na Vila de Ponta Negra, onde há a maior densidade de cabeleireiros da região (diz que é a reforma das meninas…), onde toda a casa tem janelas abertas, crianças a brincar e forró a tocar bem alto, onde ruas de alcatrão (as das lombas e dos buracos) vão dar a ruas de terra batida (as dos buracos e dos lagos pluviais) que vão dar a campos onde pastam um cavalo e um burro, onde cacarejam galinhas à solta.



Praça do Cruzeiro, praça central da Vila de Ponta Negra, com os orelhões azuis (cabines telefónicas) e um grupo de jovens a dançar capoeira debaixo da árvore (bem difícil de distinguir...).


As casas na Vila de Ponta Negra ainda são pequenas, simples, tijolo pintado, ou não. Mas entre estas casas, começam a crescer prédios enormes. Vão-se tapando a vista uns aos outros. Vão fazendo sombra na praia e abafando a vila. E é assim por Natal fora. São muitos os prédios que cheiram a novo. São muitos os prédios em construção. E são alguns os prédios erguidos mas não terminados, esqueletos de prédios, já escurecidos pelo tempo, sem sombra de um andaime em uso.


Natal. em todo o seu esplendor.

Entre estes prédios, desenvolve-se a área comercial. Grandes armazéns à beira de estradas abrem as portas, sempre com grandes cartazes na fachada a anunciar as características da loja.


De um lado e de outro da Avenida Engenheiro Roberto Freire, uma das avenidas estruturantes da cidade, sucedem-se os armazéns. Sucedem-se os supermercados. Enormes supermercados, todos superlativos, ele é o Nordestão, ele é o Extra… Sucedem-se também os centros comerciais: Praia Shopping, Shopping Potiguar, Shopping Cidade Jardim, Dunas Shopping, Shopping Orla Sul. E se não quiser ir para a Roberto Freire, tem sempre outras opções: o Natal Shopping, o Via Direta, o Norte Shopping, o Midway Mall, o Shop 10… E quase todo o comércio se faz assim, enclausurado, longe da praia, naquela a quem chamam a cidade do sol.
Cidade do sol… Sim, muito sol, muito calor. E isto tudo foi no “inverno”! Tanto sol, tanto calor, que as janelas envidraçadas são facultativas, podem ser apenas um rectângulo numa parede, tapado (ou não) por uma portada em madeira às ripinhas. Tanto arejamento que fica difícil de escapar aos animais e insectos que por aí se passeiam. Sobretudo os mosquitos, que se banqueteiam de noite com uma Alfacinha besuntada de repelente.
Foi assim que durante dez semanas a Alfacinha acordou ainda peganhenta do repelente, com picadas de mosquito apesar do dito. Foi assim que durante dez semanas ela se levantou da cama e abriu a janela já aberta. Que saiu de casa para o Instituto, pela Roberto Freire, sempre a tentar contar os shoppings por que passava e a analisar o andamento das obras nos prédios. De vez em quando cruzava-se no caminho com uma charrette puxada por cavalos e não deixava de sorrir.

Tirada da janela do ônibus, na Avenida Roberto Freire...


Nas ruas mais estreitas, adorava ver senhoras a andar nos passeios irregulares, sobretudo quando de saltos altos. Adorava ir antecipando o caminho do carro ou do ônibus, de forma a fazer um pouco suas estas ruas e esta cidade tão nova e diferente do que conhecia. Quando apanhava o ônibus, o desafio era fazer todo o percurso sem nenhum contratempo, desafio nunca concretizado. E quando andava a pé, o desafio era andar em linha recta o máximo possível, desafio igualmente difícil. E sempre que chegava à rua do Instituto, procurava uma placa indicando o nome da rua. Nunca encontrou.
Where the streets have no name…

Tirada de um 13º andar, do bairro de Capim Macio, numa manhã pós-vampiresca...


Praia de Ponta Negra.

2 comentários:

F. disse...

=)é tudo verdade. Eu vi.

P. disse...

Que relato fabuloso. Parece que consigo ver as ruas a desfilarem à frente dos meus olhos!