domingo, 2 de dezembro de 2007

Como a Alfacinha se "débrouillou" durante as greves

Durou uma semana e meia.
A surpresa deixou de ser surpresa. Só no primeiro dia arregalou os olhos com o mar de gente a cobrir o cais. Se calhar devia deixar de ser preguiçosa, pensar na minha linha, pegar nas minhas perninhas e andar… Mas não, o sono era muito, da primeira vez pode ser, das outras… nem por isso.
Por isso, teve de se adaptar à situação a Alfacinha: mal chegada ao cais, ocupar a linha da frente, esperar o tempo que fosse preciso e mal chegado o metro fazer-se fininha para se conseguir infiltrar na carruagem. Uma vez lá dentro, quase impossível de levantar a mão e coçar o nariz. Se o esmagamento fizesse bem à dita linha, a Alfacinha teria perdido vários centímetros.
Era tanta a lotação das carruagens, que uma vez a ponta do casaco da Alfacinha ficou presa na porta. Era tanta a lotação das carruagens, que uma vez a Alfacinha teve de segurar no seu saco com os braços no ar. Era tanta a lotação das carruagens que a situação se tornava surrealista. Estou colada a pelo menos seis pessoas. E o calor? Literalmente um calor humano… Quantas foram as observações minuciosas que pôde fazer! Esta senhora tem os cabelos espigados, este senhor está cheio de caspa, alguém aqui cheira a naftalina…
E que situação incómoda esta! Guardavam-se pudicamente mãos para não se arriscar toques involuntários e indiscretos, colava-se os pés ao chão para não se perder o lugar…
E que sensação incrível de não precisar de se segurar. Deixar-se balançar com as curvas do metro, sem medo de cair, ser-se amparada por corpos.
E quando se pensava que não cabia nem mais uma agulha na carruagem, pois bem, alguém abre a porta, aperta bem, encolhe a barriga, mais duas ou três pessoas aproveitam, encolhem a barriga, a campainha toca… as portas encravam, as pessoas apertam mais um bocadinho, vá-lá, só mais um bocadinho, e pronto, as portas fecham-se mesmo, uns centímetros a menos de espaço vital para cada um, e lá vai o metro. Oh não, tenho uma tangerina no saco… Espero que não se transforme em sumo…
Houve até quem sugerisse que as pessoas subissem para cima dos bancos! Loucura total quando aperto total.
Na Alfacinha, isto tudo provocava grandes ataques de riso abafados com algum esforço. Mas na maior parte das pessoas, era irritação e nervosismo. Começaram então a aparecer insultos aos condutores de metro nos cartazes publicitários das estações. Automaticamente, apareceram respostas. Um clima já bem tenso, acentuado depois com uma greve da função pública, com a greve dos juízes, e com todos os movimentos estudantis contra uma nova lei sobre o financiamento das universidades.
Vai aqui uma confusão!


3 comentários:

Anónimo disse...

E quando o aperto é tanto que até os pés ficam suspensos no ar?

Porfirio Silva disse...

Podem, pois, fazer-se certas perguntas:
quantos pés cabem no ar de uma carruagem?
qual a proporção certa entre pés no ar e pés no chão, para que os pés que estão no chão sejam apenas os estritamente necessários para aquele número de pés no ar?
se nem todos guardam as mãos como deve ser, seguindo os preceitos da Alfacinha, onde andam as mãos dos outros no que ao meu corpo concerne (ía dizer, "no que a mim me toca")? e que fazer se descubro uma mão perdida em algum sítio estranho? pergunto, delicadamente, "desculpe, está a apalpar-me a nádega esquerda de propósito ou inadvertidamente?"; ou espeto um tabefe e depois... desculpem, esta opção não está disponível devido à limitação dos movimentos; passemos, pois, a outros problemas...
se eu vejo as caspas dos outros, e isso depende da altura relativa do observador e do observado, o que vêem os outros de mim? será que vêem na minha cara que estou a ver a caspa deles? (não pode ser, porque se sou suficientemente alto para ver a caspa deles, eles são suficientemente baixos para não verem os meus olhos? ou nem por isso?)
colocam-se, depois, problemas ecológicos derivados do que a Alfacinha confessa serem as suas atitudes: escreve que se ri, enquanto os outros se enervam - e se todos se rissem? quantos caberiam a menos nesta mesma carruagem se todos desatassem a rir? sim, porque o riso ocupa espaço (claro, por isso é que um magote de pessoas a rir ocupa mais espaço do que o mesmo magote de pessoas caladas) nesse caso, a Alfacinha, que se ri, devia pagar bilhete duplo;
há ainda problemas políticos eventuais: que efeito teria a tentativa de um peso pesado de 160 quilos entrar numa carruagem apinhada? teria o mesmo acolhimento que um elegante corpo de 50 quilos? aqui põe-se um problema de discriminação... com base na banha;
bom, tudo isto para dizer que é inaceitável que a Alfacinha se limite a apresentar o prólogo das suas reflexões grevistas, quando, estou certo, foi muito mais longe do que aquilo que se atreve a confessar aqui em público...

Mariana la Parisienne disse...

O prólogo das suas reflexões grevistas? O quê, o facto de a Alfacinha achar indecente mudar um sistema de reforma, assim como quem muda as regras de um jogo a meio do dito? De tratar estas pessoas como se fossem umas espertalhonas a aproveitarem-se do sistema?
Ah sim, realmente isto foi só um prólogo.
(Quanto à questão da caspa, derivado a ela ser por vezes tão marcada, basta dar uma olhadela para um ombrozito inocente vestido de preto que: oh p’ra ela ali. E se todos na carruagem desatassem a rir, seria talvez mais um problema de hálitos e perdigotos! Mas esta semana já há greve outra vez (youpi) hei-de tentar fazer a experiência.)