quinta-feira, 10 de maio de 2007

A Alfacinha, a biblioteca e a química orgânica ou A Alfacinha, a biblioteca e um curto-circuito neuronal.


Vai a Alfacinha para a biblioteca, pronta para engolir tudo sobre química orgânica. Instala-se, estojo em frente, garrafa de água à direita, lição à esquerda e rascunho ao centro. Abre o dossier, começa a folhear… Ao princípio ainda vai entrando, reacções de oxido-redução, condensações, acetilações… Um momento, 30 segundos para respirar. Na cabeça da Alfacinha tudo se começa a misturar. Mais 30 segundos, por favor.
À sua direita, um futuro médico, a estudar hematologia. À sua frente… não dá para ver. Alguém escondido atrás de um computador. À sua esquerda, uma futura arquitecta, para quem o silêncio da biblioteca não chega e por isso tapa os ouvidos com umas borrachas cor-de-laranja. A Alfacinha levanta um pouco o olhar e, aí, vê o seu ídolo, já por ela topado em outras ocasiões. Não pode deixar de o observar a Alfacinha. Um verdadeiro dandy. Casaco em abas de grilo, colete de cetim com voluptuosas cornucópias, calças às riscas impecavelmente cortadas, gravatinha de cetim cor-de-rosa carinhosamente enroladinha e presa com uma magnífica pregadeira e botões de punho a condizer. Para além disso, traz desenhado na cara um encaracolado bigode. O toque final. A matar. Com a cabeça romanticamente pousada numa mão, enquanto a outra segura um livro, o herói da Alfacinha vai saboreando umas bolachinhas Petit Écolier. Tão imponente e tão frágil ao mesmo tempo! Na mesa tem pousada a sua esplendorosa bengala, uma maleta Louis Vuitton e uma cartola bege. Eis que se levanta. O coração da Alfacinha dispara. Ela começa a inspirar, a inspirar, a inspirar, passa lá oh amigo!, para testar o perfume. Inebriante. Dele só fica esse volátil rasto, enquanto a sua figura alta se afasta ao longe. Suspiro.
Raios, perdi a minha animação. A Alfacinha encontra-se de novo em tête-à-tête com a química orgânica. Um gole de água e 10 segundos para respirar. Volta a encarar a folha. O hemiacetal continua a olhar para ela com ar de gozo. Ela olha para ele com ar de desespero. Não te compreendo. Como passas para acetal? Fala comigo… Mas ele, nada. Deixa-se ficar, no alto da sua imobilidade, da sua incontestabilidade. Ele é ele, mais ninguém. Ele dá ele, porque sim.
«Nous vous rappelons qu’il est interdit de boire ou de manger à l’intérieur de la bibliothèque.»
Sim senhora, é a quinta vez que mo dizes esta tarde. Não me queres antes ajudar aqui na química orgânica ? A Alfacinha olha para o relógio. Que injustiça: enquanto ela não avançou de uma página, os ponteiros deram quase uma volta inteira. Está bem abelha. Mais um gole de água. Vira a página a Alfacinha. Sabes o que te digo, oh acetal? Batatas. Não gosto de ti.
«Les vols sont fréquents à l’intérieur de la bibliothèque, nous vous recommandons de surveiller vos affaires personnelles et, dans la mesure du possible, de laisser vos sacs devant vous, merci. Pickpockets are operating in the library. Please watch your personal belongings at all time and do not leave your bags on the floor, thank you.»
A senhora também fala inglês. Mas será uma estratégia para assustar os não francófonos? É que traduzir «os roubos são frequentes na biblioteca» por «há carteiristas em acção» não deixa de ser curioso… Só dá vontade de agarrar bem as suas coisinhas, e começar a olhar à volta para descobrir onde andarão eles. Será que este caramelo aqui ao meu lado… será que a história da hematologia não é só para disfarçar…
A Alfacinha procura outras coisas com que se distrair, eu??, inconscientemente, vá. Lá estão elas, as temíveis moléculas. São 21h30, a Alfacinha não jantou, já não tem água na garrafa, tem a cabeça a explodir. Digam-lhe para se ir embora e mandar à fava a química orgânica. Se faz favor.

6 comentários:

Mab disse...

Oh Alfacinha, faz favor, quando está na Biblioteca, estudar! pelo menos é o que a Mãe pensa que ela está a fazer até tão tarde...ora, afinal, talvez não seja bem assim...
ai a imaginação?!

nno mar disse...

De facto a biblioteca faz-te bem à imaginação :)
Deve ser da quantidade de cenários que se desenvolvem no abrigo de livros, num ambiente em que reina o silêncio exterior enquanto inúmeras cabeças correm a uma velocidade desmedida tentando acompanhar com coisas tão.. profundas, quanto o hemiacetal. E é em pequenos gestos como o coçar a cabeça com o lápis que se ouve a cabeça a gritar: "O QUE É ISTO!!"

Anónimo disse...

Olá maninha
Ao ler o teu texto pensei: estará certamente a ler o Arnaud...então peguei no meu livro com um pivete a mofo e fui ler o capítulo 17.20 "por aquecimento com um alcool, em presença de HCL anidro, os aldeídos e as cetonas transformam-se em hemiacetais e em acetais"... entusiasmado e de certa forma nostalgico, continuei a ler, nesta experiência que foi estar aqui em Almada a ler um texto que ainda há pouco estiveste a ler em Paris....foi giro....agora se me disseres que não estavas a ler o Arnaud, fica tudo estragado.

Beijinhos e bom estudo
Rui André

Anónimo disse...

Ó Alfacinha, manda à fava a química orgânica !
Imaginação de ouro :)

Beijinho

Joana Babo

Anónimo disse...

Adorei o post.
O mais engraçado (ou então não!) é que também tive teste de Química Orgânica esta semana! Mas não encontrei nenhum dandy na minha biblioteca...
Estarei a constatar que a menina sofre de “preguicite” aguda?! Como eu a compreendo!!

Next post: da biblioteca para o supermercado???
Beijinhos

Mariana la Parisienne disse...

Maninho, obrigada pela tua citação, hoje servi-me dela ;) ah, não te vou dizer que estava só a desesperar em frente aos meus apontamentos, sem apoio bibliográfico... mas para a próxima, chamarei o Arnaud ao meu auxílio.
Em contrapartida, o dandy estava MESMO na minha mesa, parecia tele-transportado de um romance, mas não o inventei. Da primeira vez que o vi, estava ele à porta de uma papelaria com um senhor do mesmo género. E andavam os dois nisto, há um bocado: passe o senhor primeiro, não por favor, insisto, não não, passe o senhor, só depois de si...
Quem sabe se não continuarei as observações no supermercado (está na hora...)! ;)